quinta-feira, 11 de junho de 2015


ESTELA ERA UMA MERGULHADORA E ESTAVA SEMPRE SUBMERSA


Me parece que Estela começou a amar a água ainda dentro de sua mãe. Mesmo antes de nascer, ela já amava nadar. É como voar, pensava. Pensava muitas coisas, embora não ouvisse nada. Haveria um mundo lá fora? (O leitor pode pensar que a dúvida era porque nunca escutava nada, mas Estela ainda não sabia que isso era possível, então os motivos eram outros). Pensava nisso porque queria conhecer espaços com mais água. Quando nasceu, chorou de alegria: havia, afinal, um outro mundo! Espantou-se então por ter água saindo de si própria e orgulhosa, com uma curiosidade espantosa começou a acariciar seus próprios olhinhos. Que beleza era ter olhos!

Estela então foi jogada aos mais diversos tratamentos. As pessoas não paravam de bater palmas ou estalar os dedos quando estavam perto dela. No início, ela até os procurava sob sorriso esperançosos, mas depois de um tempo, cansada, não tinha mais paciência para procurar nada. Colocaram um aparelho em seu ouvido. Nada. Outro. Nada. Outros. Nada.

Estela ainda era criança e já estava cansada daquele mundo. Seu único prazer era tomar banho. Sim, na mesma banheirinha que tinha desde quando nasceu. Mas quando essa estava começando a ficar pequena demais, Estela desejou parar de crescer. Tomaria banho no chuveiro? Nunca! No chuveiro não se pode mergulhar, não se pode abrir os olhos embaixo d’água e ver as mãos enrugadas, não se pode ter os cabelos esvoaçando pelas ondas provocadas pelo movimento de sobe e desce. 

Mas cresceu e foi obrigada a ir para o chuveiro. Chorou muito em seu primeiro banho de pé. Dessa vez, era um choro de tristeza... (mas acredito também que sentia um prazer ao chorar por ter mais água sempre consigo). Estela não sabia falar, mas ficou apontando tanto para a banheira inutilizada no quartinho dos fundos que seus pais compraram outra. A nova banheira era muito muito muito maior que a outra! Estela podia até nadar dentro dela. Vivia na banheira. Enrugada das cabeças aos pés, deitava-se então no sofá e dormia profundamente, sem se preocupar com nada.

Mas seus pais estavam preocupados. Os doutores não encontraram nada que curasse a surdez de Estela. Ela ainda não sabia se comunicar, pois não havia escola especializada para surdos onde moravam. 

Mudaram para o Rio de Janeiro. Levaram a grande banheira, que foi logo esquecida quando Estela viu... o mar!

Não imaginava que havia tanta água junta! O mar é a confirmação que o mundo é bom, sim senhor! Já na escola, Estela só sabia falar do mar. Desenhem o lugar preferido de vocês: Estela desenhava o mar. Façam uma redação sobre as férias: Estela contava que foi todos os dias a praia e só. E quando tiveram que escolher somente uma coisa para levar em uma viagem? Estela escolheu o mar.

_Estela! O mar não pode ser transportado.
_Não?
_Não!
_Então não iria viajar!
_Pra nenhum lugar?
_Só pra onde tivesse mar!

Estela aprendeu rapidamente a ler, escrever e também a se comunicar por sinais. Diziam estar entre os melhores da turma, embora não tivesse muitos amigos. No intervalo, enquanto os outros brincavam de pique-pega ou esconde-esconde, Estela estava sempre lendo livros ou ajudando o jardineiro da escola. Ele a deixava regar as plantas e assim Estela aproveitava para se molhar. Muitas vezes chegava encharcada em sala de aula, de modo que tinha que ter sempre um uniforme extra em sua mochila.

Foi num dos intervalos, entre Mil Léguas Submarinas, Pequena Sereia, O velho e o mar e tantos outros livros que Estela descobriu o que queria ser quando crescer: mergulhadora. Contou rapidamente a novidade a todos e adorava conhecer pessoas novas para que lhe perguntassem “E você, pequenina, o que quer ser quando crescer?”. Ela então escrevia com letrinhas tortas: MERGULHADORA!

Aos 18 anos, Estela começou um curso de mergulho. Descobriu então, maravilhada, que embaixo d’água as pessoas também não ouviam umas as outras e tinham que usar a comunicação por gestos. Nada poderia ser melhor.

Seus pais estavam tão orgulhosos da filha que esqueceram totalmente dos dramas dos primeiros anos de vida de Estela. Só queriam que a filha tivesse mais companhias. Nunca tivera grandes amigos, ou um namorado, por exemplo. Mas os rapazes sempre a cortejam, dizia a mãe. E o pai: Não sei, parece estar sempre submersa, mesmo fora d’água. Até as colegas perguntavam:

_Estela, porque não namora?
_Namorar pra quê?
_Pra se ter alguém, ué, não sei.
_Alguém pra quê?
_Ai, deixa pra lá.
_Tá.

Quando Estela fez 30 anos, seus pais morreram. Sua mãe de câncer e seu pai, logo depois, de tristeza. Estela era só choro. E agora, toda essa água saindo de dentro dela já não a consolava. Ela chorou durante semanas. Parou de ir às aulas de mergulho. Dois peixes de seu aquário morreram de fome. Perdia horários, coisas e começou a trocar e esquecer os sinais. Dormia cansada e acordava mais ainda. Dois meses depois, Estela havia secado. Seus tios que cuidavam desde então, decidiram mandá-la para sua avó Maria, no interior.

Muitos já tiveram ou tem uma avó como a de Estela. Maria fez as comidas mais gostosas que sabia preparar, acariciou seus cabelos todas as noites, fez de tudo para aprender libras e então contou-lhe histórias e mais histórias.
Estela foi aos poucos acalmando toda sua dor e teve vontade de ver o mar.

_Mar não tem, mas tem rio, serve?
_Serve, vó. É limpo?
_Limpíssimo!

E então Estela foi pro rio. Havia até outros mergulhadores, provocando inicialmente em Estela uma súbita tristeza ao se lembrar do Rio e de seus pais, mas logo depois mergulhou e se esqueceu de tudo.

A dor muda as pessoas. Há aqueles que se fecham para tudo e todos e vivem uma solidão que julgam digna e aqueles que necessitam mudar para que tudo comece a fazer sentido. Estela preferiu emergir para a vida. Fez muitos amigos e até começou a gostar de alguém.
Seu nome era Bernardo.

_Como ele é? Perguntou sua vó
_Ah... Não sei como explicar.

Estela nunca havia pensado muito nisso e não sabia como agir perto dele. A avó, sorrindo, contou então todas as histórias de romance que viveu. Elas pareciam antiquadas e até inocentes, pensando no mundo de hoje, mas Estela achou graça e até seguia alguns conselhos de sua avó.

Bernardo também se interessava muito por Estela e passou a querer aprender como se comunicar por sinais. Ela era um mistério para ele. Numa das inúmeras “aulas” a beira do rio, ele a beijou furtivamente. Ela corou, ele sorriu e deu-lhe outro beijo.
Estela chegou a confessar para sua vó que nesse dia ouviu embaixo d’água um “eu te amo” sussurrado. Não sabia explicar nem como tinha sido direito, tamanho foi sua surpresa, pois nunca havia escutado nada, nem sabia como era escutar. Teria sido verdade ou imaginação?

Pois bem, o namoro vingou e eles iam mergulhar juntos todos os dias. Davam beijinhos embaixo d’água e tiravam fotos dos peixes. Estavam felizes juntos, mas veio então uma enorme queda d’água, levando os dois embora. Foram encontrados muito longe dali, perto do mar.

No funeral, a avó de Estela encontrou a mãe de Bernardo e disse:
_Estela foi feliz. Ela nasceu e viveu na água, assim como morreu nela. Todos nós iremos um dia, o importante é viver fazendo aquilo que se gosta. E Estela gostava... Gostava da água e de Bernardo.

A mãe de Bernardo, Analice, então chorou. Não chorava havia anos. 


E então choveu por dois dias.
"você quer viver a vida do outro"

(terapia, 09/06/2015)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

_tenho muito medo dele me rejeitar.

_porque ele te rejeitaria?

_não sei, mas é sempre assim... eu nunca consigo entender o porquê de ser rejeitado. 

_e mesmo assim você se sentiu rejeitado toda sua vida, não é?

(terapia, 01/06/2015)