ESTELA
ERA UMA MERGULHADORA E ESTAVA SEMPRE SUBMERSA
Me parece
que Estela começou a amar a água ainda dentro de sua mãe. Mesmo antes de
nascer, ela já amava nadar. É como voar, pensava. Pensava muitas
coisas, embora não ouvisse nada. Haveria um mundo lá fora? (O leitor pode pensar que a dúvida era porque nunca escutava nada, mas Estela ainda não sabia que isso era possível, então os motivos eram outros). Pensava nisso porque queria conhecer espaços com mais água. Quando nasceu,
chorou de alegria: havia, afinal, um outro mundo! Espantou-se então por
ter água saindo de si própria e orgulhosa, com uma curiosidade
espantosa começou a acariciar seus próprios olhinhos. Que beleza era ter olhos!
Estela
então foi jogada aos mais diversos tratamentos. As pessoas não
paravam de bater palmas ou estalar os dedos quando estavam perto
dela. No início, ela até os procurava sob sorriso esperançosos, mas depois de um tempo, cansada, não tinha mais
paciência para procurar nada. Colocaram um aparelho em seu ouvido.
Nada. Outro. Nada. Outros. Nada.
Estela
ainda era criança e já estava cansada daquele mundo. Seu único
prazer era tomar banho. Sim, na mesma banheirinha que tinha desde
quando nasceu. Mas quando essa estava começando a ficar pequena
demais, Estela desejou parar de crescer. Tomaria banho no chuveiro? Nunca! No chuveiro não se pode mergulhar, não se pode abrir os
olhos embaixo d’água e ver as mãos enrugadas, não se pode ter
os cabelos esvoaçando pelas ondas provocadas pelo movimento de sobe e desce.
Mas cresceu e foi obrigada a ir para o chuveiro. Chorou muito em seu primeiro banho de pé. Dessa vez, era um choro de tristeza... (mas
acredito também que sentia um prazer ao chorar por ter mais água sempre consigo). Estela não sabia falar, mas ficou
apontando tanto para a banheira inutilizada no quartinho dos fundos
que seus pais compraram outra. A nova banheira era muito muito muito maior que
a outra! Estela podia até nadar dentro dela. Vivia na banheira.
Enrugada das cabeças aos pés, deitava-se então no sofá e dormia
profundamente, sem se preocupar com nada.
Mas seus
pais estavam preocupados. Os doutores não encontraram nada que
curasse a surdez de Estela. Ela ainda não sabia se comunicar, pois
não havia escola especializada para surdos onde moravam.
Mudaram para o Rio de Janeiro. Levaram a grande banheira, que foi logo esquecida quando Estela viu... o mar!
Não
imaginava que havia tanta água junta! O mar é a confirmação que o
mundo é bom, sim senhor! Já na escola, Estela só sabia falar do
mar. Desenhem o lugar preferido de vocês: Estela desenhava o mar.
Façam uma redação sobre as férias: Estela contava que foi todos
os dias a praia e só. E quando tiveram que escolher somente uma coisa
para levar em uma viagem? Estela escolheu o mar.
_Estela!
O mar não pode ser transportado.
_Não?
_Não!
_Então
não iria viajar!
_Pra
nenhum lugar?
_Só pra
onde tivesse mar!
Estela
aprendeu rapidamente a ler, escrever e também a se comunicar por
sinais. Diziam estar entre os melhores da turma, embora não tivesse muitos amigos. No intervalo, enquanto os outros brincavam de
pique-pega ou esconde-esconde, Estela estava sempre lendo livros ou
ajudando o jardineiro da escola. Ele a deixava regar as plantas e
assim Estela aproveitava para se molhar. Muitas vezes chegava
encharcada em sala de aula, de modo que tinha que ter sempre um
uniforme extra em sua mochila.
Foi num
dos intervalos, entre Mil Léguas Submarinas, Pequena Sereia, O velho
e o mar e tantos outros livros que Estela descobriu o que queria ser quando
crescer: mergulhadora. Contou rapidamente a novidade a todos e
adorava conhecer pessoas novas para que lhe perguntassem “E você,
pequenina, o que quer ser quando crescer?”. Ela então escrevia com
letrinhas tortas: MERGULHADORA!
Aos 18
anos, Estela começou um curso de mergulho. Descobriu então,
maravilhada, que embaixo d’água as pessoas também não ouviam
umas as outras e tinham que usar a comunicação por gestos. Nada poderia ser melhor.
Seus pais
estavam tão orgulhosos da filha que esqueceram totalmente dos
dramas dos primeiros anos de vida de Estela. Só queriam que a filha
tivesse mais companhias. Nunca tivera grandes amigos, ou um namorado,
por exemplo. Mas os rapazes sempre a cortejam, dizia a mãe. E o pai:
Não sei, parece estar sempre submersa, mesmo fora d’água. Até as
colegas perguntavam:
_Estela,
porque não namora?
_Namorar
pra quê?
_Pra se
ter alguém, ué, não sei.
_Alguém
pra quê?
_Ai,
deixa pra lá.
_Tá.
Quando
Estela fez 30 anos, seus pais morreram. Sua mãe de câncer e seu pai, logo depois, de tristeza. Estela era só choro. E agora, toda essa água saindo de
dentro dela já não a consolava. Ela chorou durante semanas. Parou
de ir às aulas de mergulho. Dois peixes de seu aquário morreram de
fome. Perdia horários, coisas e começou a trocar e esquecer os
sinais. Dormia cansada e acordava mais ainda. Dois meses depois,
Estela havia secado. Seus tios que cuidavam desde então, decidiram mandá-la para sua avó Maria, no interior.
Muitos já
tiveram ou tem uma avó como a de Estela. Maria fez as comidas mais
gostosas que sabia preparar, acariciou seus cabelos todas as noites,
fez de tudo para aprender libras e então contou-lhe histórias e mais histórias.
Estela
foi aos poucos acalmando toda sua dor e teve vontade de ver o mar.
_Mar não
tem, mas tem rio, serve?
_Serve,
vó. É limpo?
_Limpíssimo!
E então
Estela foi pro rio. Havia até outros
mergulhadores, provocando inicialmente em Estela uma súbita tristeza
ao se lembrar do Rio e de seus pais, mas logo depois mergulhou e se
esqueceu de tudo.
A dor
muda as pessoas. Há aqueles que se fecham para tudo e todos e vivem
uma solidão que julgam digna e aqueles que necessitam mudar para que
tudo comece a fazer sentido. Estela preferiu emergir para a vida. Fez
muitos amigos e até começou a gostar de alguém.
Seu nome
era Bernardo.
_Como ele
é? Perguntou sua vó
_Ah...
Não sei como explicar.
Estela
nunca havia pensado muito nisso e não sabia como agir perto dele. A
avó, sorrindo, contou então todas as histórias de romance que
viveu. Elas pareciam antiquadas e até inocentes, pensando no mundo
de hoje, mas Estela achou graça e até seguia alguns conselhos de sua avó.
Bernardo
também se interessava muito por Estela e passou a querer aprender como se
comunicar por sinais. Ela era um mistério para ele. Numa das
inúmeras “aulas” a beira do rio, ele a beijou furtivamente. Ela
corou, ele sorriu e deu-lhe outro beijo.
Estela
chegou a confessar para sua vó que nesse dia ouviu embaixo d’água
um “eu te amo” sussurrado. Não sabia explicar nem como tinha sido direito,
tamanho foi sua surpresa, pois nunca havia escutado nada, nem sabia
como era escutar. Teria sido verdade ou imaginação?
Pois
bem, o namoro vingou e eles iam mergulhar juntos todos os dias. Davam
beijinhos embaixo d’água e tiravam fotos dos peixes. Estavam
felizes juntos, mas veio então uma enorme queda d’água, levando
os dois embora. Foram encontrados muito longe dali, perto do mar.
No
funeral, a avó de Estela encontrou a mãe de Bernardo e disse:
_Estela
foi feliz. Ela nasceu e viveu na água, assim como morreu nela. Todos
nós iremos um dia, o importante é viver fazendo aquilo que se
gosta. E Estela gostava... Gostava da água e de Bernardo.
A mãe de
Bernardo, Analice, então chorou. Não chorava havia anos.
E então choveu por dois dias.