A epidemia oculta - Andrew Solomon
Quando tive minha primeira crise de depressão, há quase sete anos, não a associei de forma alguma ao fato de ser gay. Associei-a muitas outras coisas - ao suicídio assistido de minha mãe (do qual participei) no fim de uma batalha terrível contra o câncer; ao trauma de voltar a morar em minha cidade natal, Nova York, depois de ter vivido os cinco anos anteriores em Londres; à aguda tensão de publicar meu primeiro romance e viajar para divulgá-lo. Além disso, associei o colapso sobretudo ao fato de eu ter acabado de sair de uma relação de muitos anos e estar solteiro, mas ser gay e solteiro não me parecia particularmente significativo.
Quando comecei a pesquisar sobre depressão gay para esta revista, o que descobri me deixou horrorizado e me obrigou a um acerto de contas comigo mesmo e com elementos de insegurança que estavam sepultados e que nunca admiti ou imaginei, apesar de ter passado cinco anos estudando e escrevendo sobre depressão para um livro, O demônio do meio-dia, em parte um relato de minha própria luta contra a doença.
Gays sofrem de depressão em número imensamente desproporcionais. É a peste não reconhecida da nossa comunidade e, se a única razão que me ocorre para explicar por que não se ouve mais a respeito é que temos vergonha. Mas a investigação empírica está aí. Num estudo recente de amostras aleatórios numa população de quase 4 mil homens de 17 a 39 anos, 3,4% dos heterossexuais tinham tentado o suicídio em algum momento, enquanto entre os que viviam com parceiros do mesmo sexo a taxa foi de 20%. Outro estudo mostrou que 7,3% dos homossexuais haviam tentado o suicídio quatro vezes ou mais, em comparação com 1% dos heterossexuais. Dezenas de outros estudos reproduzem essas graves estatísticas. Lésbicas e gays apresentam mais depressão, mais pânico, mais dependência química, mais tendência suicida e mais suicídio do que seus homólogos héteros.
Muitas explicações foram apresentadas, algumas mais plausíveis do que outras, porém a mais óbvia é a homofobia. Gays têm maior probabilidade de serem rejeitados pela família do que a população em geral/ e maior probabilidade de terem tido dificuldade de adaptação social. Em razão desses problemas, é maior também a probabilidade de abandonarem os estudos. Apresentam uma taxa mais alta de doenças sexualmente transmissíveis. Têm menos probabilidade de formarem casais estáveis na vida adulta; e menos probabilidade de contarem com cuidadores dedicados no fim de sua vida. Têm maior probabilidade de serem infectados pelo vírus HIV e, mesmo aqueles que não foram, quando se tornam deprimidos, têm mais probabilidade de fazerem sexo sem proteção e contraírem o vírus, o que por sua vez agravada a depressão. Acima de tudo, o mais provável é que tenham vivido a vida de forma furtiva e, em consequência sofrido inteiro isolamento.
No começo do ano, viajei a Utrecht, na Holanda, para um encontro com Theo Sandfort, que desenvolvera um trabalho pioneiro sobre depressão gay. Como era de se esperar, Sandfort havia descoberta que a taxa de depressão é mais alta entre pessoas que não saíram do armário do que entre as que saíram, e mais alta entre solteiros do que entre os que mantêm relações estáveis e duradouras. No geral, Sandfort descobriu que o nível de dificuldade que os gays encontram em seu dia a dia é extremamente alto e de maneiras tão sutis que às vezes passam despercebidas até mesmo para as pessoas afetadas. Por exemplo, é menos provável que gays partilhem informações pessoais com colegas no trabalho, mesmo que já tenham saído do armário para essas pessoas. "E isto aqui é a Holanda" disse Sandfort, "onde somos mais abertos aos gays que praticamente em quase qualquer outro lugar do mundo. Há muita aceitação da homossexualidade, mas o mundo ainda é hétero, e a pressão de ser gay num mundo hétero é considerável".
Sandfort sabe do que está falando. Ele enfrentou tempos bastante difíceis quando saiu do armário, sofrendo críticas do pai e da mãe. Quando tinha vinte anos, ficou deprimido e debilitado. Passou sete meses num hospital psiquiátrico, o que mudou a atitude dos pais, lhe permitiu ter com eles outro nível de intimidade e deu início a um novo tipo de saúde mental de que até hoje desfruta. Por ter "caído e dado a volta por cima", disse ele, "sei como sou e, consequentemente, também sei um pouco como são os outros gays".
Embora pesquisadores como Sandfort venham realizando grandes e bem estruturados estudos para compilar correlações e números, o sentido dessas estatísticas continua um tanto confuso. Em dois artigos notáveis, "A homofobia internalizada e a reação terapêutica negativa" e "Homofobia interna e autoestima associada a gênero na psicanálise de pacientes gays", Richard C. Friedman e Jennifer Downey escrevem em tom comovente sobre as origens e os mecanismos da homofobia internalizada. Um estudo recente sobre a socialização ente gays indica que as crianças que serão homossexuais quando adultas geralmente são criadas em contextos heterossexistas e homofóbicos e, aos seis ou sete anos, começam a internalizar a visão negativa da homossexualidade manifestada pelos colegas ou pelos pais. "Nesta situação", escrevem Friedman e Downey, "a trajetória de desenvolvimento do paciente era uma em que o início da infância estava impregnada de ódio contra si mesmo, condensado em narrativas homofóbicas internalizadas construídas no fim da infância". A homofobia internalizada costuma ter origem em abuso ou negligência na primeira infância. "Antes de se tornarem sexualmente ativos com os outros" escrevem Friedman e Downey, "muitos meninos que se tornarão gay são rotulados de 'afeminados' ou 'veadinhos'. Já foram provocados, ameaçados com violência física, excluídos e até agredidos por outros meninos". Na verdade, um estudo de 1998 revelou que uma orientação homossexual estava estatisticamente relacionada a ter pertences roubados na escola ou destruídos de propósito. Essas dolorosas experiências podem gerar um "ódio total e obstinado a si mesmo" que é quase intratável.
A experiência de reconhecimento que tive quando li esse material foi desconcertante. De repente lembrei como foi duro ser gay e percebi como ainda era difícil. Eu era particularmente consciente de ter sido pouco masculino quando criança e de ter sido atormentado por isso. Era desajeitado e nada atlético; usava óculos; não me interessava por eventos esportivos; vivia com o nariz enfiado num livro; achava mais fácil fazer amizade com meninas. Tinha uma predileção por ópera incompatível com a minha idade. Era fascinado pelo glamour. Muitos colegas me evitavam. No acampamento de verão onde fiquei quanto tinha dez anos, mexiam muito comigo, me azucrinavam e me chamavam de veado - palavra que me perturbava muito, porque eu ainda não tinha formulado para mim mesmo nenhum tipo de desejo sexual. Levei muita surra. No sétimo ano, o problema havia se ampliado. Na escola, o olhar atento de um corpo docente tolerante oferecia alguma proteção, e eu era apenas esquisito e impopular; livresco demais, descoordenado demais, artístico demais. No ônibus escolar, porém reinava a brutalidade. Lembro de ir sentado rigidamente perto de uma menina cega com quem fiz amizade, enquanto o ônibus inteiro zoava de mim cantando, batendo os pés em ritmo dos insultos. Eu era alvo não apenas de escárnio, mas também de um ódio intenso, que me confundia tanto quanto me magoava. Esse período horrível não durou muito; no nono ano, já tinha melhorado e, no último ano, eu já não era impopular (nem na escola nem no ônibus). Mas tinha aprendido bastante sobre aversão e bastante sobre medo, e nunca mais me livrei deles.
Mesmo os gays que se comportam de acordo com os estereótipos de seu gênero e atravessam a infância relativamente incólumes podem enfrentar problemas. A parte mais interessante da obra de Friedman e Downey examina paciente que aparentam ser semelhantes em seu "comportamento manifesto àqueles que parecem ter superado as piores consequências do trauma", mas que na realidade estão severamente debilitados por uma persistente aversão a si mesmos. Essas pessoas costumam manifestar forte preconceito contra queles cuja homossexualidade lhes parece de alguma maneira espalhafatosa, por exemplo homens afetados ou afeminados, aos quais dedicam o desdém que sentem por sua própria de masculinidade. Talvez achem, de forma consciente ou não, que aqueles não sejam queridos em áreas distantes de sua vida erótica - no trabalho, por exemplo -, pois acreditam que os que sabem que eles são gays os consideram inferiores. "Uma visão negativo do eu como insuficientemente masculino funciona como fantasia organizadora inconsciente", escrevem Friedman e Downey. Pessoas oprimidas por essas atitudes podem atribuir todos os problemas que enfrentam na vida à sua sexualidade. Esses pacientes acabam acreditando que odeiam a si mesmos porque são gays.
Quando entendi o que era homossexualidade, eu soube que ela não seria bem acolhida na minha família. No quarto ano fui levado a um psiquiatra, e anos depois minha mãe admitiu que na época queria saber se eu era gay; pelo visto, ele disse que não. Tenho certeza de que o desinformado terapeuta teria recebido imediatamente a incumbência de corrigir o problema da minha sexualidade se tivesse feito uma avaliação mais precisa. Não contei à minha família sobre as zombarias no acampamento e na escola; mas uma colegas meu contou à sua mãe o que acontecia no ônibus escolar todos os dias, e ela contou à minha, que quis saber por que eu não tinha dito nada. Como poderia dizer? Quando comecei a sentir um lancinante desejo sexual, guardei segredo. E quando um garoto adoravelmente lindo tentou me seduzir durante uma viagem da turma, achei que ele só queria me irritar e que contaria meu desagradável segredo a todo mundo; para minha eterna tristeza, rechacei suas insinuações. Preferi perder a virgindade com um estranho cujo nome nunca descobri, num repugnante local público. Morri de raiva de mim mesmo. Nos anos seguintes, meu terrível segredo me consumiu e me bifurquei na pessoa perdida que fazia coisas revoltantes em banheiros públicos de subsolo e no aluno brilhante com um monte de amigos que se divertia muito na faculdade.
Quanto tive meu primeiro relacionamento sério, aos 24 anos, eu já havia incorporado uma porção de experiência infelizes à minha percepção de identidade sexual. Esse relacionamento, quando o analiso agora, parece ter sido não apenas surpreendentemente afetuoso, mas também incrivelmente sincero. Marcou a minha saída daquela infelicidade acumulada e, nos dois anos em que vivi com esse namorado, sentido que a luz tinha chegado à parte escura da minha vida.
Mais tarde, acreditei que minha sexualidade estava de alguma forma ligada ao sofrimento de minha mãe em sua doença final; ela odiava tanto o que eu era, que esse ódio era um veneno que escorria dela para mim e corrompia meus prazeres românticos. Não consigo separar a homofobia dela da minha homofobia, mas sei que ambas me custaram caro, ainda que ela, em muitos sentidos, fosse uma mãe maravilhosa, cujo amor era extremamente saudável e precioso para mim. Quando comecei a me sentir suicida durante minha primeira depressão séria, deliberadamente cortejei o HVI, o que, olhando para trás, não é de surpreender; era apenas um modo de transformar a tragédia interna dos meus desejos em uma realidade física.
Mas há esperança. "Acreditamos" escrevem Friedman e Downey, "que muitos homens e mulheres gays superam de fato as consequências de sua infância, e a integração na subcultura gay contribui para facilitar essa saída feliz". Escrevem também que um contexto social gay positivo prepara as pessoas para sentirem segurança, autoestima, uma identidade forte e amor.
Sempre achei que a linguagem do orgulho gay tem dominado o establishment gay porque é, de fato, o oposto do que um grande número de gays vivencia. A vergonha é endêmica. "A culpa e a vergonha de ser gay levam ao ódio de si mesmo e ao comportamento autodestrutivo", escrevem Friedman e Downey. Muitos gays alimentam, pelo menos por algum tempo, e no início, fantasias de conversão. Essas fantasias se tornam mais difíceis de realizar por causa de um movimento de orgulho gay que acha a vergonha gay vergonhosa. Se você é gay e se sente mal por isso, os "orgulhófilos" zombarão de seu constrangimento, os homofóbicos zombarão de você por ser gay e você acabará genuinamente desamparado, forçado a se sentir mal pelos atormentadores de gays e pelos valentões de pátio de escola. Nós de fato internalizamos nossos atormentadores. Com frequência reprimimos as lembranças de como a homofobia externa foi dolorosa para nós quando a experimentamos pela primeira vez. Pacientes gays com frequência descobrem, depois de uma prolongada terapia, crenças arraigadas como a de que "meu pai (ou minha mãe) sempre me odiou porque sou homossexual". O mais triste é que talvez tenham razão. Um estudo da New Yorker pediu a uma vasta gama de pessoas que respondesse à seguintes pergunta: "o que você preferiria para seu filho ou sua filha: que fossem heterossexual, sem filhos, não casado ou casado mas um tanto infeliz; ou que fosse homossexual, com um relacionamento estável e feliz e com filhos?". Mais de um terço de dos entrevistados escolher a opção "heterossexual, sem filhos, não casado ou caso mas um tanto infeliz". De fato, para muitos pais a homossexualidade é um castigo que lhes foi infligido por causa de suas próprias transgressões; ela não diz respeito à identidade dos filhos, mas à identidade dos pais.
Tenho tendência a uma humildade gay menos espaventosa do que o orgulho gays estilo bandeira arco-íris, mas que é livre dos atributos negativos da vergonha gay. Sei que muitas coisas na minha vida são, pelo menos em parte, compensações exageradas por persistentes sentimentos homofóbicos de falta de masculinidade. Eu salto de paraquedas, tenho uma arma de fogo e pertenço a um clube de tiro, e faço atividades para a organização Outward Bound no verão - tudo para compensar o tempo que invisto no que ainda considero um interesse não masculino por roupas, a busca da arte e o abraço erótico e emocional de homens. Em geral me apresento como bissexual e mantive três relações de longo prazo com mulheres, em parte para dar mais provas de masculinidade - o que tem sido um esforço de proporções às vezes devastadoras. Mesmo com homens eu às vezes tento encenar uma dominação que não sinto necessariamente, procurando redimir minha masculinidade mesmo num contexto gay. Perdi muito tempo dessa maneira.
Agora consigo reconhecer os elementos de homofobia internalizada e acredito que estou bem livre do fardo de tristeza que veio junto com minhas preferências sexuais. Tenho usado medicamentos e extensa terapia para tratar a depressão; o fato de meu problema ter origem social não significa que eu precise esperar uma solução social para ele. A depressão gay, como qualquer depressão, responde favoravelmente à intervenção médica, psicológica e social, e os que delam sofrem deveriam buscar a ajuda mais rápida e eficiente possível. Construir uma vida melhor só pode começar de fato quando nos livramos dos sintomas mais abjetos.
Mantive uma série de relacionamentos significativos de longo prazo com homens, e a vida com meu último namorado foi incrivelmente feliz durante os vários anos que durou - mais feliz do que jamais imaginei que pudesse ser. Acho que a batalha para enxergar minhas fobias e meus demônios com clareza me ajudou a amar de um modo mais profundo e a valorizar o amor de maneira mais completa; ela tem me dado um conhecimento de mim mesmo e uma capacidade de intimidade que de outra forma talvez me faltassem; tornou-me uma pessoa melhor e por fim me conduziu à verdadeira realização e até mesmo à grande alegria. No fim, não tenho muito a lamentar, mas espero que para os próximos que trilhem esse caminho a travessia seja um pouco mais fácil.