quarta-feira, 3 de março de 2021

Sentia dentro de mim um estímulo cada vez mais forte, e cheguei a devanear algo que pode ser considerado a pior das coisas de que um homem é capaz. A vítima, como era de esperar, era um colega de turma, um nadador habilidoso, dono de um admirável porte físico.

O local era um porão. Um banquete secreto estava sendo oferecido. Sobre a toalha de mesa de um branco imaculado, resplandeciam candelabros elegantes; facas e garfos de prata enfileiravam-se à direita e à esquerda dos pratos. Havia também os habituais arranjos de cravos. Apenas o espaço demasiado grande deixado no centro da mesa causava estranhamento. Sem dúvida, um prato muito grande seria servido.

— Ainda não?

A pergunta era de um dos comensais. Não pude ver seu rosto por causa da escuridão, mas o timbre de voz era solene, de um homem idoso. Aliás, não podia enxergar o rosto de nenhum dos presentes devido à penumbra. Somente mãos alvas se projetavam sob a luz, manipulando reluzentes facas e garfos de prata. Pairava no ar um murmúrio que ora lembrava uma incessante conversa em voz baixa, ora vozes que falavam sozinhas. Era um banquete fúnebre no qual, além do ocasional ranger das cadeiras, não se distinguiam outros sons. — Acho que logo, logo ficará pronto.

Respondi, obtendo apenas um silêncio lúgubre. Percebi que todos haviam ficado descontentes com minha resposta.

— Gostariam que eu fosse dar uma olhada?

Levantei-me e abri a porta da cozinha. Lá, num canto, havia uma escada de pedra que levava para o piso térreo.

— Ainda não?

Perguntei ao cozinheiro. — O quê? Logo vai ficar pronto.

Também mal-humorado, ele parecia picar algumas folhas e respondeu-me sem levantar a cabeça. Sobre a enorme mesa feita de tábua grossa, do tamanho de dois tatames, não havia nada.

Do alto da escada, desciam risadas. Ergui os olhos e vi outro cozinheiro descendo, segurando o braço de meu colega, um rapaz robusto. O menino usava calças compridas comuns e uma camiseta azul-marinho que deixava seu peito à mostra.

— Ah, é B, não é mesmo?

Chamei seu nome sem pensar. Ao chegar ao pé da escada, com as mãos enfiadas nos bolsos, ele sorriu para mim com malícia. Então, de súbito, o cozinheiro saltou sobre ele por trás e apertou-lhe o pescoço. O menino resistiu com violência.

“Será que é um golpe de judô? É isso, um golpe de judô... Como se chama mesmo? Isso... Aperte o pescoço... Não vai morrer de verdade... Só vai desmaiar...”

Pensava comigo mesmo, enquanto assistia àquela luta miserável. De repente, o pescoço do jovem pendeu sem vida do braço robusto do cozinheiro. Então, sem nenhum esforço, ele o levantou e depositou sobre a mesa. O outro cozinheiro se aproximou e, com mãos de burocrata, tirou a camiseta, o relógio, as calças, deixando-o rápida e totalmente nu. O corpo despido do menino jazia com o rosto virado para cima e a boca entreaberta. Dei um longo beijo naqueles lábios.

— É melhor de barriga para cima ou de bruços? — perguntou-me o cozinheiro.

— Acho que de barriga para cima.

Assim respondi porque, daquela maneira, o peito, que parecia um escudo da cor de âmbar, ficaria à mostra. O outro cozinheiro puxou da prateleira uma enorme travessa ao estilo ocidental, do tamanho exato para comportar um ser humano. Era estranha, com dez pequenos furos, cinco em cada borda.

— Um, dois, três!

Os dois cozinheiros deitaram o rapaz inconsciente na travessa, de barriga para cima. Assobiando alegremente, passaram uma corda fina pelos buraquinhos das duas bordas e amarraram o corpo com firmeza. Suas mãos ágeis mostravam habilidade. Enfileiraram grandes e vistosas folhas de salada à volta do corpo nu. Por fim, uma faca e um garfo de aço, excepcionalmente grandes.

— Um, dois, três!

Os dois ergueram a travessa sobre os ombros. Eu abri a porta da sala de jantar.

Fui recebido por um silêncio de boas-vindas. O prato ocupou o espaço que lhe fora reservado na mesa, que cintilava pálida à pouca luz. Voltei ao meu lugar e, de um dos cantos da travessa, ergui com as mãos a faca e o garfo enormes.

— Por onde devemos começar?

Não houve resposta; sentia-se no ar muitos rostos se projetando à volta do prato.

— Aqui deve ser um bom lugar.

Cravei o garfo no coração. Um jato de sangue atingiu-me em cheio o rosto. Empunhando a faca com a mão direita, comecei a cortar sem pressa a carne do peito, primeiro em fatias finas...


Yukio Mishima - Confissões de uma máscara

 Chegou o último ano da guerra, e eu completei vinte e um anos de idade. O novo ano acabara de começar e todos os estudantes de minha universidade foram convocados para trabalhar na fábrica N de aviões, nas proximidades de M. Oitenta por cento trabalhavam como operários e os vinte restantes, os mais frágeis, faziam algum tipo de serviço de escritório. Eu integrava esse último grupo. Ainda assim, no exame físico do ano anterior, eu fora aprovado na categoria 2B, e preocupava-me com uma convocação a qualquer momento.

Localizada em uma região desolada, onde uma poeira amarelada pairava no ar, a gigantesca fábrica — só para atravessá-la de um lado a outro, levava-se trinta minutos — operava mobilizando alguns milhares de operários. Eu era um deles, na condição de funcionário temporário 953, identificação número 4409. Essa enorme fábrica operava baseada num misterioso cálculo de custos de produção que não se preocupava com o retorno do capital investido: dedicava-se a um gigantesco nada. Não era, pois, à toa que um juramento místico era entoado toda manhã. Eu nunca vira uma fábrica tão estranha. Nela, modernas técnicas científicas, avançados métodos administrativos, o pensamento acurado e racional, tudo isso se juntava e punha-se a serviço de uma única coisa: a morte. A imensa fábrica, voltada para a produção de aviões de combate modelo Zero, usados pelos esquadrões especiais de ataque, vibrava com estrépito, gemia, gritava aos prantos, rugia, lembrando uma obscura religião. De resto, sem essa grandiloqüência religiosa, eu não conseguia imaginar a existência de mecanismo tão colossal. Até mesmo a maneira como os diretores engordavam suas barrigas tinha ares religiosos.


De tempos em tempos, as sirenes advertiam para um ataque aéreo, convocando para a missa negra dessa pervertida religião. O escritório se alvoroçava, um sotaque interiorano espraiava-se sem cerimônia: “O que está acontecendo?”. Não havia rádio na sala. Uma menina que trabalhava no escritório do superintendente vinha correndo nos informar: “São diversas formações de aviões inimigos”. Enquanto isso, a voz grave dos alto-falantes ordenava às estudantes e às crianças das escolas primárias que se dirigissem aos abrigos. Encarregados da assistência e do salvamento andavam de um lado a outro distribuindo uma espécie de etiqueta vermelha com os dizeres impressos: “Hemóstase: ______ horas ______ minutos”. Os feridos deveriam preencher o horário em que o sangue estancara e pendurar a etiqueta no pescoço. Passados dez minutos ou menos desde o alarme das sirenes, os alto-falantes anunciavam: “Todos para os abrigos”.

Carregando caixas com documentos importantes, funcionários que trabalhavam no escritório apressavam-se em direção ao cofre subterrâneo. Depois de guardá-los, saíam voando para o piso térreo e juntavam-se à multidão de capacetes de ferro e capuzes antiaéreos que atravessava o pátio correndo. Seu alvo era o portão principal, para onde fluía caudalosamente. Do lado de fora, estendia-se a planície desolada, de uma nudez amarela. Cerca de setecentos, oitocentos metros adiante, num bosque de pinheiros sobre uma suave colina, havia inúmeros abrigos escavados. A multidão calada, impaciente, cega, dividida em duas fileiras, dirigia-se para eles por entre a poeira, rumo ao que, embora não passasse de uma pequena vala de terra vermelha que poderia desmoronar a qualquer momento, não era a Morte — corria em direção a algo que, fosse o que fosse, em todo caso não era a Morte.


Yukio Mishima - Confissões de uma máscara

Ao dar por mim, percebi que haviam me deixado sozinho no rochedo.

Pouco tempo antes, eu fora com minha irmã e meu irmão até os pés daquele penhasco, à procura dos peixinhos que lampejavam por entre as rochas à beira-mar. Não conseguimos pegar tantos quanto imaginávamos, e os dois começavam a se enjoar da brincadeira. Uma empregada veio nos chamar, para levar-nos ao guarda-sol onde minha mãe se encontrava. Com um semblante pouco amistoso, recusei-me a acompanhá-la, e ela me deixou sozinho, levando consigo apenas os dois pequenos.

O sol da tarde de verão batia em cheio na superfície do mar, sem dar trégua. A baía toda era um gigantesco e vertiginoso espetáculo. No horizonte, as nuvens de verão pairavam caladas, com metade de suas formas magníficas, tristonhas, proféticas, imersas nas águas. Seus músculos eram pálidos como alabastro.

Dois ou três barcos a vela, lanchas e vários botes de pesca que haviam partido da praia moviam-se hesitantes mar adentro. Fora as pessoas a bordo, não se via outra forma humana. Um silêncio sutil pairava sobre tudo. A brisa marítima, estampando no rosto segredos delicados, fantasiosos, trouxe aos meus ouvidos o bater invisível de asas, como o de alegres insetos. A costa era formada ali por rochas planas, dóceis, que avançavam para o mar. Havia apenas dois ou três penhascos escarpados como aquele onde me sentara.

As ondas se formavam no mar alto, inflando-se em incertas formas verdes, e vinham deslizando sobre a superfície da água. Dela sobressaíam rochedos mais baixos, que, como mãos brancas em busca de socorro, elevavam borrifos espumantes e, ainda resistindo, mergulhavam na profunda sensação de abundância, como se sonhassem boiar livres de amarras. Logo uma onda os deixou para trás e se aproximava da praia sem perder velocidade. Então, de dentro de sua murça verde algo despertou e se ergueu, revelando a lâmina afiada do gigantesco machado do mar, pronta a desferir seu golpe. De repente, aquela guilhotina azul-escuro despencou, jorrando brancos respingos de sangue. O dorso da onda perseguia a crista esfacelada, refletindo o azul cristalino do céu, aquele azul inexistente neste mundo, que se projeta nas pupilas de alguém no limiar da morte... Os rochedos lisos e carcomidos, antes visíveis, esconderam-se nas espumas brancas durante a breve investida, mas agora tornavam a cintilar com os resquícios da onda batendo em retirada. Do alto do rochedo, vi bernardos-eremitas cambaleando e caranguejos imóveis sob o brilho ofuscante.

Uma sensação de solidão logo se misturou às lembranças de Omi. Relato a seguir como isso se manifestou. Eu ansiava por me aproximar da solidão que transbordava da vida de Omi, de seu isolamento, obra do destino; imitava-o agora, desfrutando da solidão daquele momento, a qual, em aparência, assemelhava-se um pouco à dele: o vazio que sentia diante da plenitude do mar. Devia, sozinho, fazer ambos os papéis, o dele e o meu. Para isso, tinha de encontrar algum ponto em comum entre nós, por ínfimo que fosse. Dessa maneira, a solidão inconsciente que ele carregava, eu a sentiria por ele, e poderia, consciente, agir como se tal isolamento estivesse repleto de deleite, realizando enfim a fantasia segundo a qual o prazer que eu sentia ao vê-lo se transformaria no prazer que o próprio Omi sentiria.

Desde que começara a ficar obcecado pela pintura de são Sebastião, eu adquirira o hábito de cruzar os braços sobre a cabeça toda vez que me encontrava despido. Meu corpo frágil não tinha nem a sombra de sua exuberante beleza. Agora, porém, sem querer, via-me de novo naquela pose. Meus olhos focalizaram as axilas. E fui acometido por um incompreensível desejo sexual.

Juntamente com o verão haviam chegado os primeiros rebentos daquela mata negra, que nem se comparava à de Omi, é verdade. Ali estava o ponto em comum entre mim e ele. Sem dúvida, sua presença era patente em meu desejo sexual. Mas tampouco podia negar que meu desejo relacionava-se também com minhas próprias axilas. Naquele momento, a brisa marítima que fazia minhas narinas estremecerem, a luz intensa do verão que brilhava, provocando uma ardência em meus ombros e peito nus, o fato de não ver nenhuma forma humana até onde a vista alcançava — a junção de tudo isso me fez recorrer ao “mau hábito”, pela primeira vez ao ar livre, sob o céu azul. Escolhi minhas próprias axilas como objeto de desejo...

Estremeci tomado por uma tristeza inusitada. A solidão queimava-me feito o sol. O maiô azul-marinho de lã grudara em meu abdômen, provocando uma sensação desagradável. Desci vagaroso o rochedo e mergulhei meus pés na água. As marolas lhes davam o aspecto de conchas brancas mortas, e vi com nitidez o fundo do mar forrado delas, tremulando com as enciclias. Ajoelhei-me dentro da água. Nesse instante, uma onda quebrava e rugia grosseira em minha direção; atingiu-me no peito e rendi-me a ela, que me envolveu quase todo com seus respingos.

Ao recuar, senti-me lavado de minha impureza. Junto com meus incontáveis espermatozóides, os inúmeros microrganismos, as sementes de plantas marinhas e as ovas de peixe, ela havia sido engolida e levada pelo mar espumante.


Yukio Mishima - Confissões de uma máscara

Mais uma lembrança... O cheiro de suor, um odor que me fazia galopar, despertava meus anseios, me dominava...

Ao aguçar os ouvidos, percebo um som áspero, penoso, turvo, quase inaudível, que chega a amedrontar. Às vezes, uma corneta se mistura a ele, e vozes que cantam, simples, misteriosamente melancólicas, se aproximam. Puxo a mão da criada, vamos, rápido, apressando-a, envolto em seus braços, ansioso por chegar logo ao portão.

Eram as tropas militares que passavam em frente de casa, retornando do treinamento. Soldados gostam de crianças, e eu ficava sempre na expectativa de ganhar deles cartuchos vazios. Mas como minha avó me proibira de aceitá-los, dizendo que eram perigosos, a essa expectativa acrescia-se certa alegria furtiva. A marcha surda das botas pesadas, os uniformes sujos, as armas formando uma floresta sobre os ombros, eram suficientes para fascinar qualquer criança por completo. Porém, o que fazia com que me sentisse daquela maneira, motivando-me veladamente a querer ganhar os cartuchos, era apenas o cheiro do suor dos soldados.

O suor dos soldados — um odor como a brisa do mar, como o ar da orla marítima, torrado da cor do ouro —, aquele cheiro golpeou minhas narinas e me embriagou. Talvez essa tenha sido minha primeira lembrança de um odor. É lógico que não havia aí nenhuma relação direta com prazeres sexuais, mas o cheiro do suor foi aos poucos despertando em mim o anseio tenaz e sensual por coisas como o destino dos soldados, a natureza trágica de sua profissão, suas mortes, os países distantes que vêem...

Tais imagens insólitas foram as primeiras coisas com que deparei em minha vida. Desde o início, erguiam-se diante de mim com perfeição magistral. Sem uma única falha. Anos depois, eu procuraria nelas a nascente dos meus atos e sentimentos, e novamente não lhes faltava nada.

Desde a infância, minha concepção de vida jamais divergiu da teoria agostiniana da predeterminação. Não foram poucas as vezes em que dúvidas fúteis me atormentaram, e continuam me atormentando, mas, considerando-as uma espécie de tentação ao pecado, permaneci inabalável em minhas posições determinísticas. Entregaram-me o que poderia chamar de cardápio completo das inquietudes de minha vida antes ainda que eu pudesse lê-lo. Bastava-me pendurar o guardanapo e me sentar à mesa. Até mesmo o fato de que estaria hoje escrevendo um livro inusitado como este já se encontrava ali, devidamente registrado, diante dos meus olhos desde o início.


Yukio Mishima - Confissões de uma máscara


Foi mais ou menos nessa época que minha primeira lembrança começou a aflorar, afligindo-me com imagens de estranha nitidez.

Não sei se era minha mãe, uma enfermeira, uma criada ou minha tia quem me levava pela mão. Tampouco sei dizer ao certo qual era a estação do ano. O sol da tarde se projetava palidamente sobre as casas que flanqueavam a ladeira. Eu subia em direção a minha casa levado por essa mulher que não sei quem era. Como vinha descendo alguém, a mulher me puxou com força pela mão, abriu caminho e ficou parada a um lado, esperando que a outra pessoa passasse.

De vez em quando essa imagem voltava, mais intensa, concentrada, e decerto a cada vez acrescida de um novo significado. Isso porque, em meio à cena vaga que a circundava, apenas a figura “daquele que desce a ladeira” emerge com precisão desproporcional. Mas isso tem sua razão de ser: trata-se da primeira das lembranças que me atormentaram e assombraram durante a vida inteira.

Era um jovem quem descia a ladeira em nossa direção, carregando no ombro um jugo do qual pendiam, à frente e atrás, baldes de excremento cujo peso ele distribuía com destreza por seus passos ladeira abaixo. Trazia um pano sujo enrolado em torno da testa. Seu rosto era bonito e corado, e os olhos brilhavam. Era um limpador de fossas, um coletor de excrementos.

Calçava um tabi próprio para aquele tipo de serviço e vestia uma calça justa de algodão azul-marinho.

Observei aquela figura com atenção incomum para uma criança de cinco anos. Embora ainda não fosse capaz de percebê-lo com clareza à época, eu havia recebido um chamado misterioso, sombrio, a revelação inicial e alegórica de uma força que se manifestava pela primeira vez na figura daquele limpador de fossas. O excremento é, afinal, um símbolo da terra, e o que me chamava era sem dúvida o amor malevolente da Mãe-Terra.

Pressenti então que neste mundo há um tipo de desejo semelhante à dor pungente. “Quero me transformar nele” foi a vontade que me sufocou ao olhar para aquele rapaz todo sujo: “Quero ser ele”. Lembro-me com clareza de que havia dois motivos importantes para esse meu desejo. Um deles era sua calça justa azul-marinho; o outro, sua profissão. A primeira delineava com perfeição seu corpo da cintura para baixo, movendo-se com agilidade, parecendo vir em minha direção. Passei a adorar de forma inexplicável essa vestimenta, embora não entendesse por quê.

A profissão... Naquele instante, da mesma maneira como crianças querem ser generais quando começam a se dar conta deste mundo, fui tomado pela ambição de me tornar coletor de excrementos. Poderia dizer que a calça azul-marinho foi talvez uma das causas desse desejo, mas com certeza não foi a única. Com o tempo, essa ambição foi se fortalecendo, tomando conta de mim, atingindo um estágio inusitado de desenvolvimento.

Ou seja, senti em relação àquele trabalho uma tristeza penetrante, algo como um anseio pela dor pungente, capaz de contorcer meu corpo. No trabalho daquele jovem senti “algo trágico”, na acepção mais patética da palavra. Uma sensação de “auto-renúncia”, indiferença, intimidade com o perigo, uma mistura notável do nada com uma força vital: todas essas sensações transbordavam de mim, esmagando-me com seu peso e me fazendo prisioneiro aos cinco anos de idade. Talvez eu tenha me enganado quanto à função de limpador de fossas. É provável que alguém tenha me contado sobre alguma outra profissão, e eu me confundi devido ao uniforme, mas desejava de todo modo que fosse esse o seu trabalho. Não tenho outra explicação.

O fato é que, mais tarde, esses mesmos sentimentos se transferiram para os condutores de hanadensha e os perfuradores de bilhetes de metrô: ambos provocavam-me uma sensação profunda de “vida trágica”, algo que eu desconhecia e do qual parecia estar excluído para sempre. Era o que eu sentia sobretudo no caso do perfurador de bilhetes. Naquela época, um odor que lembrava borracha ou hortelã se espalhava pelas estações, fundindo-se com os botões dourados perfilados no uniforme azul, na altura do peito, o que instigava minha mente à rápida associação com o “trágico”. Não sei bem por quê, mas para mim eram “trágicas” as pessoas que levavam suas vidas inalando aquele tipo de ar. E meus sentidos ansiavam por aquilo; acima de tudo, as vidas, os casos que se desenrolavam sem nenhuma relação comigo, em lugares que me eram negados, essas pessoas e esses lugares compunham minha definição de “coisas trágicas”. Parecia que a mágoa por me sentir eternamente excluído desse contexto sempre se transformava, em sonho, naqueles mesmos trabalhadores e em suas vidas, e que essa mágoa era tudo o que eu podia compartilhar de sua existência.

Se era esse o caso, então as “coisas trágicas” das quais eu começava a tomar conhecimento talvez não passassem de sombras, projeções da mágoa provocada pelo fugaz pressentimento de uma exclusão ainda maior.


Yukio Mishima - Confissões de uma máscara