quarta-feira, 3 de março de 2021

 Chegou o último ano da guerra, e eu completei vinte e um anos de idade. O novo ano acabara de começar e todos os estudantes de minha universidade foram convocados para trabalhar na fábrica N de aviões, nas proximidades de M. Oitenta por cento trabalhavam como operários e os vinte restantes, os mais frágeis, faziam algum tipo de serviço de escritório. Eu integrava esse último grupo. Ainda assim, no exame físico do ano anterior, eu fora aprovado na categoria 2B, e preocupava-me com uma convocação a qualquer momento.

Localizada em uma região desolada, onde uma poeira amarelada pairava no ar, a gigantesca fábrica — só para atravessá-la de um lado a outro, levava-se trinta minutos — operava mobilizando alguns milhares de operários. Eu era um deles, na condição de funcionário temporário 953, identificação número 4409. Essa enorme fábrica operava baseada num misterioso cálculo de custos de produção que não se preocupava com o retorno do capital investido: dedicava-se a um gigantesco nada. Não era, pois, à toa que um juramento místico era entoado toda manhã. Eu nunca vira uma fábrica tão estranha. Nela, modernas técnicas científicas, avançados métodos administrativos, o pensamento acurado e racional, tudo isso se juntava e punha-se a serviço de uma única coisa: a morte. A imensa fábrica, voltada para a produção de aviões de combate modelo Zero, usados pelos esquadrões especiais de ataque, vibrava com estrépito, gemia, gritava aos prantos, rugia, lembrando uma obscura religião. De resto, sem essa grandiloqüência religiosa, eu não conseguia imaginar a existência de mecanismo tão colossal. Até mesmo a maneira como os diretores engordavam suas barrigas tinha ares religiosos.


De tempos em tempos, as sirenes advertiam para um ataque aéreo, convocando para a missa negra dessa pervertida religião. O escritório se alvoroçava, um sotaque interiorano espraiava-se sem cerimônia: “O que está acontecendo?”. Não havia rádio na sala. Uma menina que trabalhava no escritório do superintendente vinha correndo nos informar: “São diversas formações de aviões inimigos”. Enquanto isso, a voz grave dos alto-falantes ordenava às estudantes e às crianças das escolas primárias que se dirigissem aos abrigos. Encarregados da assistência e do salvamento andavam de um lado a outro distribuindo uma espécie de etiqueta vermelha com os dizeres impressos: “Hemóstase: ______ horas ______ minutos”. Os feridos deveriam preencher o horário em que o sangue estancara e pendurar a etiqueta no pescoço. Passados dez minutos ou menos desde o alarme das sirenes, os alto-falantes anunciavam: “Todos para os abrigos”.

Carregando caixas com documentos importantes, funcionários que trabalhavam no escritório apressavam-se em direção ao cofre subterrâneo. Depois de guardá-los, saíam voando para o piso térreo e juntavam-se à multidão de capacetes de ferro e capuzes antiaéreos que atravessava o pátio correndo. Seu alvo era o portão principal, para onde fluía caudalosamente. Do lado de fora, estendia-se a planície desolada, de uma nudez amarela. Cerca de setecentos, oitocentos metros adiante, num bosque de pinheiros sobre uma suave colina, havia inúmeros abrigos escavados. A multidão calada, impaciente, cega, dividida em duas fileiras, dirigia-se para eles por entre a poeira, rumo ao que, embora não passasse de uma pequena vala de terra vermelha que poderia desmoronar a qualquer momento, não era a Morte — corria em direção a algo que, fosse o que fosse, em todo caso não era a Morte.


Yukio Mishima - Confissões de uma máscara

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